sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Essa é digna de nota: O RG DE DEUS


O RG de Deus

Celio Levyman

Existe uma categoria de pessoas, os trekkies, fanáticos pela série televisiva “Star Trek” ou, como conhecida por aqui, “Jornada nas Estrelas”. A série teve várias continuações no vídeo, mas filmes de longa-metragem também.Um deles, a “Última Fronteira”, dirigido pelo próprio William Shattner, não é o melhor da série, mas contém algumas coisas interessantes.
Por motivos que não vem ao caso, a nave Enterprise vai procurar um planeta no centro da Galáxia, onde todas as civilizações conhecidas acreditavam ser o Éden, a morada de Deus. Em determinada cena, após um diálogo com o “Deus”, o famoso Capitão James T. Kirk questiona sua autoridade. O seu sempre companheiro, médico Dr. Mc Coy, intervém preocupadíssimo e pergunta a ele: ”Mas Jim, você vai pedir a identidade de Deus?”. Aos fãs da série ou que não viram o episódio no cinema, ele está à disposição nas lojas em DVD, em promoção...
Mas eis que a realidade superou a ficção: nesta semana, o portal da Internet BBC Brasil publicou uma matéria de sua correspondente em Roma intitulada “Italiano processa padre para que prove existência de Jesus”. Não, não é piada, nem está na seção de humor.
Resumidamente, um ex-agrônomo aposentado chamado Luigi Cascioli, que se autodefine como “ateu militante”, desafiou o pároco da cidadezinha italiana de Bagnorregio, perto de Roma, a provar na Justiça que Cristo existiu de verdade. A primeira audiência já ocorreu em 4 de Janeiro passado, com base em “abuso da credulidade popular” e “substituição de pessoa”.
O pároco da pequena cidade foi escolhido pelo litigante, após cinqüenta anos de sacerdócio, devido a suas pregações na Igreja local e pela legislação italiana, como representante do Vaticano e mesmo do papa, pois não se pode processar um chefe de estado estrangeiro. Dessa maneira, esse padre vai responder por todo o Vaticano a essa acusação. A propósito, a própria Santa Sé não se manifestou a respeito, até o momento.
Cascioli acusa o pároco e através dele toda a Igreja Católica de não ter provas sobre a existência de Cristo e de fazer com que as pessoas acreditem em algo que não existe.
Mais estupendo ainda é o fato do acusador acusar a Igreja de ter usado outra pessoa, que existiu de verdade, para construir a identidade de Jesus. Seria Giovanni de Gamala, filho de Judas, o Galileu, da casta dos asmoneus, descendente da estirpe de Davi.
Segundo o pároco acusado, Giovanni de Gamala é um desconhecido, e em troca relatou dados históricos que provariam a existência de Jesus, tais como os relatos de Adriano, Marco Aurélio e Tácito. Também coloca em dúvida a autoridade científica de seu acusador, que, segundo ele, não tem formação científica e nem conhece línguas antigas.
Luigi Cascioli alega que seu objetivo é “mostrar a verdade e destruir o cristianismo”, acreditando ganhar a causa, ao contrário do advogado do pároco, também entrevistado.
Em mais um dado curioso, para provar que Jesus não existiu, Luigi escreveu um livro, chamado “A Fábula de Cristo”. Nesse livro, segundo a BBC (não encontrei nem na Amazon.com ou em livrarias italianas on-line), ele se basearia na análise de textos antigos e da Bíblia, afirmando que possui provas de que a existência de Cristo provém de falsificação de documentos, que na realidade se referem a Giovanni di Gamala. A repercussão do caso pode ajudar a divulgar seu livro, admite, mas garante que esse não é seu objetivo: “... não posso deixar de vender meus livros só para que não digam que quero vendê-lo, defendeu-se”.
O autor da ação declara ainda que, caso a sentença não lhe seja satisfatória, irá recorrer e, caso também não dê certo, irá até o Tribunal Internacional de Haia.Curiosamente, até o momento não se observaram ligações entre esse livro e os sucessos de Dan Brown, como o “Código da Vinci” e “Anjos e Demônios”.
Esse caso especial merece algumas considerações. Em primeiro lugar, ninguém sabe onde estão os restos mortais de todos os citados no Velho Testamento, e das religiões monoteístas, sabidamente Maomé foi personagem histórico e possui seu túmulo, objeto de peregrinações dos muçulmanos.
Outra coisa a destacar é que o autor quer destruir o cristianismo, como diz, desmistificando a figura de Jesus, já que também seus restos mortais não existem, pois teria ressuscitado. Poderia alegar algo como “propaganda enganosa”, mas resolveu personificar em alguém supostamente real o papel de Cristo, o citado Giovanni di Gamela. Não consegui entender direito a lógica disso.
Outro ponto é que religiões são basicamente espirituais, e querer discuti-las na base da realidade factual, em tribunais ou fora dos mesmos, como em congressos científicos, é sair da metafísica para a arqueologia, sem escalas.
Sou judeu, mas considero-me um cético profissional. Mesmo assim, resolvi encarar esse caso como de particular curiosidade. Vejamos no Brasil algumas coisas.
Alguém sabe onde está o Bispo Sardinha? Foi mesmo devorado? Existiu? Não terá sido também um complô da Igreja, e nesse caso os padres Manoel da Nóbrega, Frei Caneca e tantos outros poderiam também entrar na categoria de “fake”. E se o Bispo Sardinha, voltando a ele, na verdade tivesse sido um espanhol perdido?
Alguns documentos encontrados, sei lá, na Chapada Diamantina, poderiam ser usados para provar esse tipo de coisa.
Na política, então, quem nos garante que existiu mesmo um poderoso General Golbery do Couto e Silva? Ou se Adhemar de Barros na verdade não seria João Pessoa, tido como morto, disfarçado?
Da mesma maneira, tal é a diferença, que o atual presidente Lula pode muito bem ser um Severino da Silva submetido a várias cirurgias plásticas, e o Luis Inácio original nunca ter existido, ou sumido quando preso no DOPS, já que sempre elogiou o tratamento dado a ele pelo ora Senador Romeu Tuma, então diretor do órgão.
E se aparecesse um Luigi Cascioli por aqui, e levasse, digamos, o Padre Julio Lancelotti, o Frei Betto e Dom Bertrand de Orleans e Bragança para as barras da Justiça? Essa admitiria o processo? Provavelmente não, pois apesar de constitucionalmente sermos um Estado laico, sem religião oficial e com separação Estado-Igreja, legado da Revolução Francesa, os tribunais exibem uma cruz, motivo de recente controvérsia.
Também penso em Israel, em algum radical judeu levando às cortes de lá algo semelhante, propondo a prova da existência de Moisés e das tábuas da lei, de Noé e da arca ou mesmo quem foi realmente a mulher de Adão, Eva ou Lilith!
Caso as baterias fossem apontadas para os neopentecostais, as coisas provavelmente se tornariam ainda mais interessantes, pois possuem todo o poder do uso da televisão e outros meios de comunicação de massa mais consistentes que a Igreja Católica. Na Rússia, algum comunista da velha guarda poderia processar o patriarca com os mesmos argumentos.
Talvez apenas no Islã esse problema não exista: embora eles sejam por definição submissos a Alá, sem livre arbítrio segundo o Alcorão, de Maomé até os sultões, todos sabem onde eles estão – a exceção está em quem quer ser o novo Califa, como Bin Laden, que ninguém acha, nem com a tecnologia da CIA e o conhecimento da fronteira Afeganistão-Paquistão que os soldados desse último país detém.
Êta mundinho complicado! Não queria estar na pele do coitado do pároco, que já deve estar entrado em anos, muito menos dos juízes italianos, pois o tal do Cascioli parece um fundamentalista dos mais ferrenhos.
Só falta aparecer Deus em pessoa e dizer para o primeiro PM que Lhe pedir a identidade: ”Sabe com Quem estás falando?”, com aquela voz modulada de cinema. Aí sim teríamos ao menos a prova de que Deus é brasileiro.
Quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006
Celio Levyman, 47 anos, é formado em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos. É mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Foi conselheiro e diretor do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
LEVYMAN, Celio. O RG de Deus. Última Instância. 8 de fevereiro de 2006. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/artigos/ler_noticia.php?idNoticia=24853. Acesso em: 24 de fevereiro de 2006.

Segue o testo de Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève, remetido pelo artigo anterior.


Os limites constitucionais das resoluções do CNJ e do CNMP

Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clemerson Merlin Clève


PORTO ALEGRE - Os Conselhos Nacionais da Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP) foram introduzidos pela Emenda Constitucional n. 45/04, representando uma espécie de carro-chefe da assim denominada Reforma do Judiciário. Trata-se da implementação, stricto sensu, de controle externo do Poder Judiciário e do Ministério Público. O CNJ está especificado no artigo 103-B da Constituição (1), em que, exaustivamente, estão elencadas as atribuições do órgão. Já o Conselho Nacional do Ministério Público está regulado no art. 130-A(2), seguindo, no seu núcleo essencial, as diretivas fixadas para o seu congênere CNJ. Criam-se, assim, dois importantes órgãos que aproximam – estrutural e organicamente - as instituições (Magistratura e Ministério Público), como ocorre já de há muito em alguns países da Europa.
A constitucionalidade lato sensu de ambos os Conselhos já foi afirmada pelo Supremo Tribunal Federal. A discussão que se põe agora é: quais os limites desses “atos regulamentares”? São “regulamentos autônomos”? Têm eles “força de lei”? Eis a controvérsia, que deve ser enfrentada independentemente do conteúdo (certamente meritório) das resoluções, a partir da ponderação entre fins e meios.
O cerne da discussão está no parágrafo 4º e inciso I do art. 103-B e no parágrafo 2º e inciso I do art. 130-A:
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA
§4º Compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:
I – zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências;
CONSELHO NACIONAL DO MINISTERIO PÚBLICO
§2º Compete ao Conselho Nacional do Ministério Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe:
I – zelar pela autonomia funcional e administrativa do Ministério Público, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.
Tendo a mesma ratio, as diretrizes que norteiam ambos os Conselhos são idênticas, registrando-se apenas a especificidade constante no Conselho Nacional de Justiça, que estabelece a competência de zelar pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, enquanto no caso do Conselho Nacional do Ministério Público essa questão não está explicitamente estabelecida. Essa sutil diferença – cujas conseqüências, poderão ter reflexos em outros campos – não significa que haja tratamento diferenciado do constituinte derivado no que diz respeito à legitimidade de “legislar” por parte dos dois Conselhos, notadamente quando em causa restrições a direitos e garantias constitucionais, inclusive e notadamente – e isto sempre foi muito caro para ambas as Instituições (Poder Judiciário e Ministério Público) – as garantias funcionais e institucionais.
Daí a necessária discussão acerca dos limites para a expedição de “atos regulamentares” (esta é a expressão constante na Constituição para os dois Conselhos). Com efeito, parece um equívoco admitir que os Conselhos possam, mediante a expedição de atos regulamentares (na especificidade, resoluções), substituir-se à vontade geral (Poder Legislativo) e tampouco ao próprio Poder Judiciário, com a expedição, por exemplo, de “medidas cautelares/liminares”. Dito de outro modo, a leitura do texto constitucional não dá azo a tese de que o constituinte derivado tenha “delegado” aos referidos Conselhos o poder de romper com o princípio da reserva de lei e de reserva de jurisdição.
Como se sabe, o que distingue o conceito de lei do de outros atos é a sua estrutura e a sua função. Leis têm caráter geral, porque regulam situações em abstrato; atos regulamentares (resoluções, decretos, etc) destinam-se a concreções e individualizações. Uma resolução não pode estar na mesma hierarquia de uma lei, pela simples razão de que a lei emana do poder legislativo, essência da democracia representativa, enquanto os atos regulamentares ficam restritos à matérias com menor amplitude normativa.
Este parece ser o ponto central da discussão. Se a atuação dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público está regulada em leis específicas (LOMAN, LOMIN’s estadual e federal, postas no sistema em estrita obediência à Constituição), parece, de pronto, inconcebível que o constituinte derivado, ao aprovar a Reforma do Judiciário, tenha transformado os Conselhos em órgãos com poder equiparado aos do legislador. Ou seja, a menção ao poder de expedir “atos regulamentares” tem o objetivo específico de controle externo, a partir de situações concretas que surjam no exercício das atividades de judicatura e de Ministério Público. Aliás, não se pode esquecer que é exatamente o controle externo que se constituiu na ratio essendi da criação de ambos os Conselhos.
No Estado Democrático de Direito, é inconcebível permitir-se a um órgão administrativo expedir atos (resoluções, decretos, portarias, etc) com força de lei, cujos reflexos possam avançar sobre direitos fundamentais, circunstância que faz com que tais atos sejam ao mesmo tempo legislativos e executivos, isto é, como bem lembra Canotilho, a um só tempo “leis e execução de leis”. Trata-se – e a lembrança vem de Canotilho – de atos que foram designados por Carl Schmitt com o nome de “medidas”. Essa distinção de Schmitt é sufragada por Forsthoff, que, levando em conta as transformações sociais e políticas ocorridas depois de primeira guerra, considerava inevitável a adoção, por parte do legislador, de medidas legais destinadas a resolver problemas concretos, econômicos e sociais. Daí a distinção entre leis-norma e leis de medida. Na verdade, as leis-medida se caracterizam como leis concretas. A base da distinção nas leis concretas não é a contraposição entre geral-individual, mas entre abstrato-concreto (K.Stern). O interesse estará em saber se uma lei pretende regular em abstrato determinados fatos ou se se destina especialmente a certos fatos ou situações concretas. Também aqui a consideração fundamental radicaria no fato de uma lei poder ser geral, mas pensada em face de determinado pressuposto fático que acabaria por lhe conferir uma dimensão individual, porventura inconstitucional(3).
O fato de a EC 45 estabelecer que os Conselhos podem editar atos regulamentares não pode significar que estes tenham carta branca para tais regulamentações. Os Conselhos enfrentam, pois, duas limitações: uma, stricto sensu, pela qual não podem expedir regulamentos com caráter geral e abstrato, em face da reserva de lei; outra, lato sensu, que diz respeito a impossibilidade de ingerência nos direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Presente, aqui, a cláusula de proibição de restrição a direitos e garantias fundamentais, que se sustenta na reserva de lei, também garantia constitucional. Em outras palavras, não se concebe - e é nesse sentido a lição do direito alemão - regulamentos de substituição de leis (gesetzvertretende Rechtsverordnungen) e nem regulamentos de alteração das leis (gesetzändernde Rechtsverordnungen). É neste sentido que se fala, com razão, de uma evolução do princípio da reserva legal para o de reserva parlamentar(4).
Tratando-se, desse modo, de atos de fiscalização administrativa, estes apenas podem dizer respeito à situações concretas. Neste caso, deverão observar, em cada caso, o respeito aos princípios constitucionais, em especial, o da proporcionalidade, garantia fundamental do cidadão enquanto asseguradora do uso de meios adequados pelo poder público para a consecução das finalidades (previstas, como matriz máxima, na Constituição). Há, assim, uma nítida distinção entre a matéria reservada à lei (geral e abstrata) e aos atos regulamentares. A primeira diz respeito a previsão de comportamentos futuros; no segundo caso, dizem respeito as diversas situações que surjam da atividade concreta dos juízes e membros do Ministério Público, que é, aliás, o que se denomina – e essa é a especificidade dos Conselhos – de “controle externo”.
Não se pode olvidar outro ponto de fundamental importância. A Constituição do Brasil estabelece no artigo 84, IV, in fine, o poder regulamentar do Chefe do Poder Executivo, podendo expedir decretos e regulamentos para o fiel cumprimento das leis, tudo sob o controle e a vigilância do Poder Legislativo em caso de excesso (art. 49,V) e da jurisdição constitucional nas demais hipóteses. Nesse sentido, fica claro que as exceções para a edição de atos normativos com força de lei (art. 62) e da possibilidade de delegação legislativa (art. 68) tão-somente confirmam a regra de que a criação de direitos e obrigações exige lei ou ato com força de lei, conforme se pode verificar na própria jurisprudência do STF (AgRg n. 1470-7).(5)
E mesmo a lei (stricto sensu) possui limites. É o que se chama de “limites dos limites” (Schranken-Schranken), como bem lembra Gilmar Ferreira Mendes, ao assinalar que da análise dos direitos fundamentais é possível extrair a conclusão errônea de que direitos, liberdades, poderes, garantias são passíveis de ilimitada limitação ou restrição. É preciso não perder de vista, porém, que tais restrições são limitadas. Cogita-se aqui dos chamados limites imanentes, que balizam a ação do legislador quando restringe direitos fundamentais. Esses limites, que decorrem da própria Constituição, referem-se tanto à necessidade de proteção de um núcleo essencial (Wesengehalt) do direito fundamental, quanto à clareza, determinação, generalidade e proporcionalidade das restrições impostas. (6)
De frisar, por outro lado, que esse poder regulamentar conferido ao Poder Executivo (e não, por exemplo, ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público) advém da relevante circunstância representada pela legitimidade do Presidente da República, eleito diretamente em um regime presidencialista (em países sob regime parlamentarista, essa legitimidade é do Governo, confundindo-se o poder executivo com o legislativo). Mas, mesmo assim, esse poder regulamentar – tanto no presidencialismo como no parlamentarismo - não pode criar direitos e obrigações (7). Não é demais lembrar, neste ponto, o âmbito próprio do respeito aos direitos fundamentais, característica básica do paradigma do Estado Democrático de Direito.
Portanto, as resoluções que podem ser expedidas pelos aludidos Conselhos não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange à restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas. O poder “regulamentador” dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar. As garantias, os deveres e as vedações dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público estão devidamente explicitados no texto constitucional e nas respectivas leis orgânicas. Qualquer resolução que signifique inovação será, pois, inconstitucional. E não se diga que o poder regulamentar (transformado em “poder de legislar”) advém da própria EC 45. Fosse correto este argumento, bastaria elaborar uma emenda constitucional para “delegar” a qualquer órgão (e não somente ao CNJ e CNMP) o poder de “legislar” por regulamentos. E com isto restariam fragilizados inúmeros princípios que conformam o Estado Democrático de Direito.
Por derradeiro: regulamentar é diferente de restringir. De outra parte, assim como já se tem a sindicabilidade até mesmo em controle abstrato de atos normativos de outros poderes (leis em sentido material) (8), como os regimentos internos dos tribunais, provimentos de Corregedorias, etc, muito mais será caso de controle de constitucionalidade a hipótese de os Conselhos virem a expedir resoluções restringindo direitos e garantias pessoais, funcionais e institucionais (9). Muito mais do que uma mera e egoística disputa por prerrogativas – como habitualmente acabam sendo qualificadas, em terrae brasilis, tentativas legítimas e democráticas de impugnação de uma série de medidas e reformas – está em causa, aqui, a defesa enfática e necessária dos elementos essenciais do nosso Estado Democrático de Direito, que, por certo, não há de ser um Estado governado por atos regulamentares, decretos e resoluções.


Segunda-feira, 14 de novembro de 2005

Acesso em 24 de fevereiro de 2006. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/ensaios/ler_noticia.php?idNoticia=21474

ATIVIDADE JURÍDICA PARA INGRESSO NA MAGISTRATURA - Considerações sobre a Resolução nº11 do Conselho Nacional de Justiça


Leandro J. Silva - Professor de Processo Civil do Curso Aprovação e do Curso Jurídico

Marcus Vinicius Corrêa Bittencourt - advogado da União em Curitiba, professor da Faculdade de Direito de Curitiba, membro do Instituto dos Advogados do Paraná

Muitas questões têm sido levantadas com relação às atribuições do Conselho Nacional de Justiça. Conforme a Emenda Constitucional n. 45 estabeleceu, ao acrescentar o art. 103-B, § 4º, da Constituição Federal, compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura:

I - zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura, podendo expedir atos regulamentares, no âmbito de sua competência, ou recomendar providências.

Com a publicação da Resolução n. 11, que trata da definição de atividade jurídica, dentre outras disposições, pelo Conselho Nacional de Justiça, começam a surgir novas indagações.

Em primeiro lugar, a norma que rege o ingresso na carreira da magistratura consta da própria Constituição Federal que, por força da Emenda Constitucional nº 45/2004, estabeleceu em seu artigo 93, inciso I, o seguinte:

Art. 93. "Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal, disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
I - ingresso na carreira, cujo cargo inicial será o de juiz substituto, mediante concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as fases, exigindo-se do bacharel em direito, no mínimo, três anos de atividade jurídica e obedecendo-se, nas nomeações, à ordem de classificação";

Já se entendia que não seria possível considerar atividades exercidas, antes da condição de Bacharel em Direito, como sendo atividades jurídicas. Ao se analisar esse aspecto da norma constitucional, deve-se levar em consideração a intenção do constituinte ao elaborar a Emenda Constitucional, qual seja, de que o Bacharel em Direito possuísse três anos de experiência. Desta forma, interpretando-se o dispositivo constitucional, a finalidade que o constituinte derivado quis imprimir à norma foi a exigência de três anos de atividade na área jurídica ao indivíduo formado em Direito, ou seja, ao Bacharel em Direito, conforme se verifica analisando os estudos realizados no Congresso Nacional.

A recente Resolução n. 11, de 31 de janeiro de 2006, do Conselho Nacional de Justiça, regulamentou a noção de atividade jurídica nesse mesmo sentido ora exposto, buscando estabelecer regras e critérios gerais e uniformes quanto ao tema, uma vez que tal assunto ainda não consta do Estatuto da Magistratura.

Assim, o art. 1º busca explicitar o alcance da norma constitucional ao determinar que somente será computada a atividade jurídica posterior à obtenção do grau de bacharel em Direito. O art. 2º, por sua vez, afirma que atividade jurídica consiste naquela exercida com exclusividade por bacharel em Direito, bem como o exercício de cargos, empregos ou funções, inclusive de magistério superior, que exija a utilização preponderante de conhecimento jurídico, vedada a contagem do estágio acadêmico ou qualquer outra atividade anterior à colação de grau. Estão compreendidos no cômputo do período de atividade jurídica os cursos de pós-graduação na área jurídica reconhecidos pelas Escolas Nacionais de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados de que tratam o artigo 105, parágrafo único, I, e o artigo 111-A, parágrafo 2º, I, da Constituição Federal, ou pelo Ministério da Educação, desde que integralmente concluídos com aprovação (art. 3º).

No momento da inscrição definitiva do concurso deverá ser feita a comprovação do período de três anos de atividade jurídica. Aqui a Resolução seguiu caminho diverso do disposto na Súmula nº 266 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual "o diploma ou habilitação legal para o exercício do cargo deve ser exigido na posse e não na inscrição para o concurso público", o que certamente ensejará inúmeras demandas perante o Poder Judiciário.

Para os ocupantes de cargos, empregos ou funções não privativos do bacharel em Direito, a comprovação do tempo de atividade jurídica será realizada mediante certidão circunstanciada, expedida pelo órgão competente, indicando as respectivas atribuições exercidas e a prática reiterada de atos que exijam a utilização preponderante de conhecimento jurídico.

Deve-se entender que houve o esclarecimento por parte da Resolução da real abrangência do dispositivo constitucional em tela, a respeito da matéria. Não houve usurpação de espaço reservado à lei em sentido formal. A presente norma tratou apenas de elucidar a compreensão daquilo que o próprio constituinte derivado já buscava, não pretendendo inovar o ordenamento jurídico. O CNJ realizou a sua função pública de controle da atividade administrativa, prevista constitucionalmente, ao dissipar as divergências a respeito do corrente entendimento da expressão "atividade jurídica".

O art. 6º da resolução em tela, por outro lado, extrapola dos limites normativos do Conselho, ao criar impedimento de integrar comissão do concurso e banca examinadora, para todo aquele que exercer a atividade de magistério em cursos formais ou informais voltados à preparação de candidatos a concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura até três anos após cessar a referida atividade de magistério. Nessa hipótese, a Resolução invadiu o campo da reserva legal, ao criar proibição que não possui expressa menção na lei em sentido formal. Nesse sentido, Lenio Luiz Streck, Ingo Wolfgang Sarlet e Clèmerson Merlin Clève, no artigo "Os limites constitucionais das resoluções do CNJ e do CNMP, publicado na Revista Jurídica Última Instância, em 14 de novembro de 2005, afirmam que "as resoluções que podem ser expedidas pelos aludidos Conselhos não podem criar direitos e obrigações e tampouco imiscuir-se (especialmente no que tange à restrições) na esfera dos direitos e garantias individuais ou coletivas. O poder "regulamentador" dos Conselhos esbarra, assim, na impossibilidade de inovar".

Tal compreensão é necessária para impedir eventual violação aos direitos fundamentais dos cidadãos, uma vez que estamos em um efetivo Estado Democrático de Direito. Apenas a lei em sentido formal, instrumento normativo originário, elaborado pelos representantes do povo, tem o condão de restringir as liberdades do cidadão.

SILVA, Leandro J.; BITTENCOURT, Marcus Vinicius Corrêa. Atividade jurídica para ingresso na magistratura Considerações sobre a resolução nº 11 do Conselho Nacional de Justiça. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 963, 21 fev. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7988. Acesso em: 24 fev. 2006.

Anotações teóricas e práticas acerca da prisão em flagrante com a nova redação do artigo 304, CPP, dada pela Lei nº 11.113/05



Eduardo Luiz Santos Cabettedelegado de Polícia, mestre em Direito Social, pós-graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, professor da graduação e da pós-graduação da Unisal

1 – INTRODUÇÃO

O Código de Processo Penal Brasileiro foi trazido ao mundo jurídico em 03.10.1941 pelo Decreto 3.689/41, contando com mais de sessenta anos de vigência. Como é de trivial conhecimento, as leis tendem a "envelhecer" num ritmo mais ou menos rápido, tornando-se anacrônicas suas normatizações, as quais passam a não surtir os efeitos almejados, carecendo, portanto, de contínuas atualizações. Na realidade atual, em face do dinamismo da sociedade contemporânea, essa característica da necessidade de atualização exacerba-se sobremaneira.
É nesse contexto que surge a Lei 11.113/05, pretendendo, através da alteração do artigo 304, CPP, modernizar o procedimento da lavratura do auto de prisão em flagrante, conferindo-lhe maior agilidade e praticidade.
Ainda antes da reforma legislativa esse novo procedimento já vinha sendo adotado pela Polícia Civil do Distrito Federal, sob a denominação de "Flagrante Eficiente", o qual tinha por objetivo basicamente reduzir o número de pessoas presentes nos plantões policiais e liberar mais rapidamente os Policiais Militares para o retorno às suas atividades de policiamento preventivo – ostensivo. [01]
Neste trabalho, proceder-se-á uma análise crítica da nova redação dada ao artigo 304, CPP, apontando as principais mudanças no procedimento com suas conseqüências práticas positivas e negativas, bem como delineando algumas orientações consideradas interessantes para a aplicação da legislação no cotidiano policial.

2 – UM PARALELO ENTRE A ANTIGA E A NOVA REDAÇÃO DO ARTIGO 304, CPP – PRINCIPAIS ALTERAÇÕES E QUESTIONAMENTOS

2.1 – COMPARANDO AS REDAÇÕES

Estabelecia o antigo artigo 304, CPP:
"Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e as testemunhas que acompanharem e interrogará o acusado sobre a imputação que lhe é feita, lavrando-se auto, que será por todos assinado".
Por seu turno, preceitua a nova redação dada pela Lei 11.113/05 o seguinte:
"Apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto".

2.2 – UMA QUESTÃO DE PUREZA TERMINOLÓGICA

A primeira observação crítica a ser feita com relação à alteração legislativa diz respeito a uma questão de terminologia. Em sua redação original o artigo 304, CPP, fazia menção à "Autoridade competente" para a lavratura do auto de prisão em flagrante. Era nítido o equívoco terminológico vez que, referindo-se o texto à Autoridade Policial, indevida seria a utilização da palavra "competente" ou a referência a "competência", já que tais expressões dizem respeito à jurisdição e não às atividades de autoridades administrativas. No caso de Autoridades Administrativas, como é o das Autoridades Policiais, a melhor opção seria referir-se a "atribuição" e não "competência".
A doutrina aponta para isso ao asseverar que a competência nada mais é do que a "medida da jurisdição". [02] Ora, o poder jurisdicional é aquele "que tem o Juiz sobre certos negócios e sobre certas pessoas em determinada circunscrição territorial" (grifo nosso), definindo-se, portanto, a competência como uma delimitação e particularização da jurisdição, de maneira a significar "a medida do poder, ou seja, a aptidão para exercê-lo em certo caso". [03] Em razão disso deve-se concordar com a lição de Espínola Filho de que "a configuração da competência pressupõe o conceito de jurisdição". [04] Assim sendo, não há que se falar em competência em seu sentido técnico – jurídico quando esse conceito esteja apartado do de jurisdição. Outro não é o escólio de Magalhães Noronha, afirmando que somente em um sentido amplo ou lato se pode falar em jurisdição que não seja atrelada à Autoridade Judicial. Portanto, somente fora da significação técnico – jurídica é que se pode falar em jurisdição policial, administrativa, militar, eclesiástica etc. [05] Estando o conceito de competência amalgamado de forma indelével com o de jurisdição, seu sentido técnico – jurídico somente pode prevalecer quando se refere à delimitação do poder jurisdicional e não à medida do poder referente a outras autoridades. Neste sentido estritamente técnico, que deveria nortear a redação legal, verifica-se que pode haver jurisdição sem competência, mas não existe competência sem jurisdição. [06]
Com o devido respeito, repudia-se o entendimento de Hélio Tornaghi ao afirmar que "a competência é genérica, refere-se a qualquer poder: o de ensinar, o de administrar, o de curar, o de construir, o de legislar etc. A jurisdição é específica. Por isso, pode-se falar em competência do Ministério Público, do chefe de polícia, do guarda – noturno. Mas seria um pouco estranho aludir-se à jurisdição do mata – mosquito". [07] Embora o texto tenha a rara qualidade da ironia e comicidade em sua exata medida, deve-se perceber que nesses casos a palavra "competência" somente poderia ser utilizada em um sentido lato, indicando a qualidade daquele que exerce as respectivas atividades, seu domínio da profissão e dos conhecimentos para o exercício de alguma função ou atividade. Em seu sentido técnico – jurídico de medida de poder está atrelada ao conceito de jurisdição, havendo outro termo mais apropriado para os casos ali elencados que seria o de "atribuição". Dessa maneira o legislador deveria primar pelo rigor o em seus textos, preferindo a utilização dos termos tecnicamente mais adequados.
A reforma promovida pela Lei 11.113/05 seria uma excelente oportunidade para lapidar o texto legal, substituindo a expressão "autoridade competente" por "autoridade com atribuição", mas o legislador deixou passar "in albis" essa ocasião e manteve a defeituosa redação original.

2.3 – PRINCIPAIS DIFERENÇAS

Partindo para um estudo das principais modificações promovidas na sistemática de lavratura da prisão em flagrante, podem-se detectar quatro mudanças principais:
a)A cisão do auto em várias peças e não mais a lavratura de uma peça única assinada ao final por todos os participantes. Na atual conformação, as pessoas serão ouvidas separadamente em peças autônomas, assinado-as e sendo liberadas a seguir, de forma a evitar sua permanência na Delegacia de Polícia depois de inquiridas, possibilitando uma redução do transtorno para os civis envolvidos como testemunhas e também liberando mais rapidamente os Policiais Militares ou Civis envolvidos para o retorno às suas respectivas atividades.
b)Entrega de cópia da oitiva ao condutor. Com isso pretende-se evitar que a passagem do tempo possa prejudicar a memória dos fatos pelo policial envolvido na ocorrência, conforme comumente acontecia. Efetivamente, um Policial Militar que promove diversas prisões em flagrante em circunstâncias muito próximas, ao ser chamado a depor, muitas vezes anos depois da lavratura da prisão em flagrante, já não se recorda adequadamente das circunstâncias daquela prisão específica e pode até confundi-la com outros acontecimentos similares. De posse da cópia de seu depoimento o policial pode organizar-se, evitando esse prejuízo da prova testemunhal no futuro processo.
c)Criação do "recibo de entrega de preso". Trata-se de uma providência interessante, inclusive para delimitar algo que era extremamente diluído, ou seja, de quem é a responsabilidade pela guarda do preso em flagrante. A partir de agora, enquanto ainda não expedido o recibo de entrega a guarda do preso é de responsabilidade da guarnição que o conduziu, mas após a expedição do documento respectivo, essa responsabilidade se transfere para a Polícia Judiciária. Isso é de extrema relevância, especialmente em casos de fugas para determinação das responsabilidades administrativas e criminais.
d)O antigo auto de prisão em flagrante, que era uma peça única que descrevia desde a apresentação do preso, um resumo das circunstâncias, as formalidades referentes à satisfação de direitos e garantias constitucionais etc., até as oitivas de testemunhas, vítimas e interrogatório do preso, passa a constituir-se em uma peça autônoma, separada das oitivas e elaborada somente pela Autoridade Policial e o Escrivão de Polícia em presença do preso ao final dos trabalhos, constando somente um resumo das diligências levadas a efeito para apuração do crime e formalização da prisão. Note-se que embora essa peça seja elaborada ao final dos trabalhos, ou seja, depois de efetuadas todas as oitivas e interrogatório do conduzido, na autuação do respectivo Inquérito Policial iniciado por auto de prisão em flagrante, esta será a primeira peça que virá logo em seguida à autuação.

2.4 – ESQUECIMENTO DA VÍTIMA

O legislador, tanto na redação antiga como na nova, esqueceu-se de mencionar a vítima ou ofendido, mas, obviamente, devem também ser ouvidos inobstante o lapso ocorrido. Entende-se que "a expressão testemunhas deve ser tida em seu sentido ampliativo para nela ser incorporada a pessoa da vítima". [08] Em sede de Inquérito Policial não há uma ordem rígida, mas normalmente é praxe que a ouvida da vítima se dê após a das testemunhas e antes do interrogatório do preso.

2.5 – NÚMERO DE TESTEMUNHAS

Desde a redação original já mencionava o código a palavra "testemunhas" (no plural), levando à natural conclusão da necessidade para a lavratura de uma prisão em flagrante de mais de uma testemunha da infração. [09] Tem-se entendido ainda que o condutor também entra na contagem desse número mínimo de testemunhas a satisfazerem a condição necessária para a formalização de uma prisão em flagrante. Por isso é que na praxe policial costuma-se designar o condutor com a expressão "Condutor e Primeira Testemunha". Neste sentido assevera Basileu Garcia "que o condutor não deixa de ser uma testemunha", tratando-se, na verdade, da "mais importante das testemunhas", uma vez que "efetuou a prisão, representando quase sempre, na movimentação da cena da captura o papel mais saliente", razão pela qual é a pessoa que "mais elementos costuma ter para o esclarecimento do fato". [10]
Entretanto, a falta de ao menos duas testemunhas da infração não obsta a lavratura do auto de prisão em flagrante. Neste caso deve-se aplicar a regra do § 2º. do artigo 304, CPP, que manda que o auto seja assinado por duas testemunhas de apresentação, pois este dispositivo não foi alterado pela Lei 11.113/05. Impende, porém, adaptar esse procedimento às novas formalidades da prisão em flagrante. Observe-se que anteriormente as testemunhas de apresentação simplesmente assinavam todas as folhas que compunham o corpo uno do auto de prisão em flagrante. Agora, com a cisão em várias peças, apresenta-se a dúvida quanto à necessidade de que as testemunhas de apresentação assinem todas as peças. A resposta a esta questão parece ser negativa de acordo com a redação do artigo 304, § 2º., CPP, que manda que tais testemunhas assinem o "auto de prisão em flagrante". Dessa forma, deverão elas atualmente assinar somente aquela peça final com tal denominação, sendo desnecessárias suas assinaturas no depoimento do condutor, nas declarações da vítima e no interrogatório do imputado. Assim sendo, nos casos corriqueiros em que haja mais de uma testemunha, o condutor e as testemunhas não assinam o auto de prisão em flagrante, mas somente os seus respectivos depoimentos. Já no caso específico da prisão em que há apenas o condutor como testemunha, devem assinar o auto de prisão em flagrante a Autoridade Policial, o condutor, as duas testemunhas de apresentação, o preso e o Escrivão.

2.6 – MOMENTO ADEQUADO PARA A EXPEDIÇÃO DO RECIBO DE ENTREGA DO PRESO E LIBERAÇÃO DAS TESTEMUNHAS

De acordo com a dicção da lei, parece que o momento adequado para a liberação das testemunhas e expedição do recibo de entrega do preso só pode ser logo depois da oitiva. A lei é bastante clara ao estabelecer que as pessoas sejam ouvidas, assinem seus depoimentos e sejam liberadas. Assim também o condutor prestará seu depoimento, assinado-o e recebendo em seguida uma cópia e o respectivo recibo de entrega do preso. Afinal a "mens legis" é voltada para a agilização da liberação das pessoas envolvidas, propiciando uma prestação de serviços mais célere ao público e uma maior eficiência quanto ao retorno dos policiais responsáveis pela prisão a seus respectivos afazeres, em especial o policiamento preventivo – ostensivo.
Não obstante, é preciso ter em mente que esta não pode ser uma regra rígida, pois pode haver necessidade da permanência das testemunhas na Delegacia, a critério da Autoridade Policial responsável pela lavratura do flagrante. Somente esta pode decidir sobre a conveniência de liberar imediatamente as testemunhas ou de retê-las no interesse da apuração completa dos fatos em situações nas quais sejam necessárias diligências complementares de acareações, reconhecimentos, depoimentos em aditamento entre outras. Também o recibo de entrega do preso somente deve ser expedido pela Autoridade Policial quando esta tiver plenas condições, de acordo com a disponibilidade de segurança, de arcar com a guarda do preso. Outra interpretação, que apontasse para uma aplicação rígida da lei, seria temerária tanto para o interesse processual da melhor apuração criminal, como para a própria segurança pública.

2.7 – DESOBEDIÊNCIA DA NOVA NORMATIZAÇÃO DO ARTIGO 304, CPP E LAVRATURA DE ACORDO COM A ANTIGA SISTEMÁTICA – CASO DE NULIDADE DA PRISÃO?

Acaso atualmente uma Autoridade Policial vier a lavrar um auto de prisão em flagrante de acordo com a antiga sistemática, não haverá "nulidade" e nem mesmo será "inválida" a prisão, pois que não há qualquer prejuízo ao indivíduo preso. Tratar-se-á de mera "irregularidade", a qual não acarretará maiores conseqüências processuais penais. [11]
No entanto, a insistência no descumprimento do artigo 304, CPP pode, em tese, gerar responsabilidade administrativa. No caso do Estado de São Paulo, por exemplo, há a Recomendação DGP no. 01/2005, de 13 de junho de 2005, sugerindo a adoção de uma padronização de procedimentos pelas Autoridades Policiais hierarquicamente subordinadas. Além disso, também no âmbito do Estado de São Paulo, há que atentar para o disposto no artigo 62, III, da Lei Orgânica da Polícia Civil (Lei Complementar 207/79), que estabelece ser dever do policial civil "cumprir as normas legais e regulamentares".

2.8 – UMA QUESTÃO PRÁTICA: O PROBLEMA DOS HORÁRIOS

Sempre foi praxe na formalização do auto de prisão em flagrante a consignação do horário da lavratura. Essa providência tem uma função específica, qual seja, estabelecer o termo inicial do prazo de 24 horas para expedição de Nota de Culpa ao conduzido, de acordo com o disposto no artigo 306, CPP.
Anteriormente tal procedimento não acarretava maiores preocupações, já que era consignado o horário uma só vez no cabeçalho do auto de prisão que constituía uma peça única. Hoje, porém, conforme a padronização dos modelos utilizados pela Polícia Judiciária, é consignado o horário no cabeçalho das diversas peças que compõem a atual formalização da prisão. Dessa forma, dois questionamentos se impõem:
a)A partir de qual dos horários deve-se contar o prazo de 24 horas para expedição e entrega da Nota de Culpa ao preso?
Com relação a isso, parece que a melhor orientação seria a contagem do prazo a partir do horário constante do "auto de prisão em flagrante", o qual é a última peça a ser elaborada e no qual efetivamente a Autoridade Policial afirma a subsistência da prisão. Assim é porque a Lei 11.113/05 em nada alterou o § 1º. do artigo 304, CPP, que prevê a possibilidade de a Autoridade Policial considerar insubsistente a prisão, acaso não hajam contra o conduzido "fundadas suspeitas", situação em que deverá liberar o preso, abstendo-se de recolhê-lo à prisão. [12] Isso tendo em vista que o artigo 306, CPP, determina a contagem do prazo a partir "da prisão", a qual somente estará formalizada definitivamente após a palavra final da autoridade policial nos termos do art. 304, § 1º., CPP.
b)A segunda questão é referente à atenção que deve ser dada para a não coincidência dos horários das diversas peças, o que poderá gerar descrédito aos trabalhos de Polícia Judiciária. Efetivamente se as oitivas dos diversos envolvidos no episódio devem ser elaboradas em peças separadas, ao consignar-se os horários iniciais das respectivas diligências, estes não poderão coincidir inclusive em obediência à norma insculpida no artigo 210, CPP, que determina a oitiva das testemunhas separadamente de forma que não possam ouvir umas os depoimentos das outras. A coincidência dos horários nessas peças componentes do flagrante, além de induzir à conclusão de infração ao precitado artigo 210, CPP, colocará em dúvida a atuação da Autoridade Policial, presidindo efetivamente cada uma das diligências enfocadas. Essa espécie de irregularidade pode ocorrer principalmente na atualidade com o uso da informática, uma vez que é comum após uma oitiva, aproveitar-se o cabeçalho previamente formatado, apenas alterando a qualificação e outros detalhes, seguindo-se diretamente para a coleta do depoimento. Algumas vezes, olvida-se fazer a atualização do horário no início do auto respectivo, o que poderá ensejar alegações de suspeitas acerca do escorreito procedimento por parte da Autoridade Policial. Assim sendo, a fim de evitar essa espécie de tentativa de desacreditar a atuação da Polícia Judiciária, deve-se empregar o máximo de atenção no que diz respeito aos horários das diligências a serem consignados na exata ordem de elaboração das peças componentes da prisão em flagrante.

2.9 – NOVA REDAÇÃO DO § 3º. DO ARTIGO 304, CPP

Rezava o dispositivo:
"Quando o acusado se recusar a assinar, não souber ou não puder fazê-lo, o auto de prisão em flagrante será assinado por duas testemunhas que lhe tenham ouvido a leitura na presença do acusado, do condutor e das testemunhas".
A nova redação trazida a lume pela Lei 11.113/05 assim dispõe:
"Quando o acusado se recusar a assinar, não souber ou não puder fazê-lo, o auto de prisão em flagrante será assinado por duas testemunhas, que tenham ouvido sua leitura na presença deste".
Mais uma vez o legislador perdeu a oportunidade de lapidar terminologicamente o texto do Código de Processo Penal. A nova redação do artigo 304, § 3º., CPP, manteve a designação do sujeito ativo da infração penal como "acusado", quando deveria ter-se utilizado de palavras mais adequadas tecnicamente como por exemplo conduzido, indiciado ou preso. [13] Isso porque em sede de Inquérito Policial inexiste acusação formal, de maneira que a palavra "acusado" deve ser reservada para a fase processual da "persecutio criminis".
Afora essa reiteração de um antigo equívoco, a alteração promovida pela Lei 11.113/05 é coerente com a nova sistemática por ela inaugurada e com a intenção do legislador, pois no momento em que o indiciado vai assinar o auto, de acordo com o novo procedimento de dispensa dos demais atores envolvidos no evento, as testemunhas da infração e o condutor já terão sido liberados após assinarem suas respectivas oitivas, deixando imediatamente a sede do plantão policial, salvo em situações excepcionais. É por isso que a lei menciona que as duas testemunhas instrumentárias de leitura assinarão o auto somente na presença do preso, deixando de arrolar o condutor e as testemunhas da infração, como ocorria anteriormente.
Note-se que a lei trata apenas da assinatura do "auto de prisão em flagrante" pelas testemunhas de leitura, olvidando que atualmente o flagrante não é redigido em uma única peça a ser assinada pelo indiciado. Na nova sistemática há um "auto de prisão em flagrante" e um "termo de interrogatório" do conduzido produzidos em peças apartadas. Obviamente, mesmo no silêncio da lei, o procedimento determinado pelo novo § 3º. do artigo 304, CPP, deve ser aplicado tanto para o "auto de prisão em flagrante" como para o "termo de interrogatório" do conduzido.

2.10 – DUAS POSSIBILIDADES EXCEPCIONAIS DE MANUTENÇÃO DA ANTIGA SISTEMÁTICA

Há uma situação excepcional em que o auto de prisão em flagrante pode continuar a ser lavrado em um corpo uno como anteriormente. Trata-se do caso do cometimento da infração contra ou em presença da própria Autoridade, regrado no artigo 307, CPP, que não restou alterado pela Lei 11.113/05.
Também nos casos de exclusiva apreensão de adolescentes em flagrante de ato infracional, nos termos do artigo 173 do ECA (Lei 8069/90), continua sendo possível a lavratura em um único corpo do "auto de apreensão de adolescente", de acordo com a antiga sistemática, tendo em vista a inexistência de alteração expressa a respeito.
Nada impede e o Princípio da Economia Processual até indica que, em havendo apreensão de adolescente simultânea com a prisão em flagrante de pessoa maior, seja lavrado apenas um auto na forma do artigo 304, CPP, com as devidas adaptações, ouvindo-se o adolescente separadamente em um "termo de declarações de adolescente infrator" e alterando a denominação do "Auto de Prisão em Flagrante" para "Auto de Prisão em Flagrante e Apreensão de Adolescente".

3 – CONCLUSÃO

Intentou-se expor no presente trabalho um paralelo entre a antiga redação do artigo 304, CPP, e as alterações promovidas pela Lei 11.113/05, com suas conseqüências teóricas e práticas.
Especial atenção foi dada ao objetivo do legislador em promover uma modernização e imprimir maior celeridade ao procedimento com vistas a um melhor atendimento ao público nas repartições policiais e a uma otimização dos recursos humanos no setor de segurança pública com destaque para as atividades preventivo – ostensivas.
Foram também apontadas as falhas do legislador que deixou passar boas oportunidades para imprimir uma melhor redação sob o aspecto técnico – jurídico aos dispositivos enfocados. Além disso, foram observadas algumas lacunas repetidas na reforma (como por exemplo, o esquecimento da menção da oitiva da vítima) ou referentes à nova redação (como por exemplo, a omissão no § 3º. do art. 304, CPP, da necessidade da assinatura pelas testemunhas de leitura do termo de interrogatório além do auto de prisão e flagrante).
As falhas legislativas, contudo, não parecem ser de gravidade, de modo que a aplicação do novo procedimento pode ser bastante satisfatória, desde que se tenha em mente que a intenção da celeridade não deve prejudicar a segurança quanto à guarda dos presos e nem a qualidade das investigações, sob pena de uma indevida e deletéria sobreposição da forma ao conteúdo no Processo Penal.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962.
ANDREUCCI, Ricardo. Flagrante Eficiente – Alterações introduzidas pela Lei 11.113, e 13 de maio de 2005. In:
www.damasio.com.br, em 18.02.06.
CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988.
ESPÍNOLA FILHO, Eduardo.Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume II. Campinas: Bookseller, 2000.
FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. Volume I. Rio de Janeiro: Record, 1960.
GARCIA, Basileu. Comentários ao Código de Processo Penal. Volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 1945.
MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Baueri: Manole, 2005.
NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal. 19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989.
PIMENTA BUENO. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. 2ª. ed. São Paulo: RT, 1857.
TORNAGHI, Hélio. Curso de Processo Penal. Volume 1. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990.
NOTAS
01 ANDREUCCI, Ricardo. Flagrante Eficiente – Alterações introduzidas pela Lei 11.113, de 13 de maio de 2005. In:
www.damasio.com.br, em 18.02.06.
02 MENDES, João, apud ACOSTA, Walter P. O Processo Penal. 4ª. ed. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962, p. 59.
03 FARIA, Bento de. Código de Processo Penal. Volume I. Rio de Janeiro: Record, 1960, p.170.
04 ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado.Volume II. Campinas: Bookseller, 2000, p. 81. No mesmo sentido: PIMENTA BUENO. Apontamentos sobre o processo criminal brasileiro. 2ª. ed. São Paulo: RT, 1857, p. 60 – 61.
05 NORONHA, Edgard Magalhães. Curso de Direito Processual Penal.19ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 44.
06 Ibid., p. 45.
07 Curso de Processo Penal. Volume 1. 7ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1990, p. 92.
08 MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005, p. 599.
09 CASTELO BRANCO, Tales. Da Prisão em Flagrante. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 96.
10 Comentários ao Código de Processo Penal. Volume 3. Rio de Janeiro: Forense, 1945, p. 113. No mesmo sentido: CASTELO BRANCO, Tales. Op. Cit., p. 96.
11 A jurisprudência e a doutrina já apontavam para solução semelhante desde antanho com referência ao disposto no artigo 307, CPP, acaso a autoridade cumulasse as funções de condutor e presidente da lavratura no auto de prisão em flagrante, não obedecendo estritamente às regras daquele dispositivo. Ver a respeito: MOSSIN, Heráclito Antônio. Op. Cit., p. 609.
12 Neste sentido: CASTELO BRANCO, Tales. Op. Cit., p. 131 – 134.
13 Defendendo a tese de que a terminologia mais adequada não é a de "acusado" ver: CASTELO BRANCO, Tales. Op. Cit., p. 42.


CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Anotações teóricas e práticas acerca da prisão em flagrante com a nova redação do artigo 304, CPP, dada pela Lei nº 11.113/05 . Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 967, 24 fev. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8025. Acesso em: 24 fev. 2006.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

O QUE É A LEI PARA OS DONOS DO PODER NO BRASIL?


Roberto Wagner Lima Nogueiramestre em Direito Tributário, professor do Departamento de Direito Público das Universidades Católica de Petrópolis (UCP) e Estácio de Sá (UNESA) de Juiz de Fora (MG), procurador do Município de Areal (RJ)

O Marquês do Paraná disse uma vez a um ministro do Império: "Eu resisto a tu
do, menos ao pedido de um amigo".
Roberto DaMatta.

Respondemos à indagação lançada no título: nada. Como instrumento de igualdade, nada. Como meio de manutenção do poder, tudo. É o que se infere do agir dos donos do poder. Raymundo Faoro, em livro clássico, analisou essas raízes históricas, ao escrever sobre "Os Donos do Poder", isto é, a formação do patronato político brasileiro [01]. Nada mais pertinente e atual nesta quadra da vida político-jurídica de nosso país.
Faoro, como homem de leis, lembra, em seu livro, o caráter do estamento burocrático, como grupo de interesses, que teve êxito historicamente na tarefa de manter o poder nas mãos de uma elite invariavelmente predatória. É o chamado estado patrimonial.
De fato, no Brasil, sob a égide de um Estado ainda de feições patrimonialistas, a lei não é instrumento de viabilização das liberdades de oportunidades. Muito pelo contrário. José Guilherme Merquior [02], forte em Max Weber, conceitua o patrimonialismo como uma estrutura de autoridade caracterizada pela indistinção entre as esferas públicas e a propriedade privada e, sob o ângulo sociológico, o estado patrimonial se singulariza pela ocorrência sistemática de formas de apropriação particular da máquina estatal.
Há exemplos aos borbotões na atualidade. O nepotismo no Judiciário em vários Estados contra a Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Justiça. A conduta de prefeitos e secretários de Estado na condução da res pública etc. Por hoje fiquemos com estes dois exemplos expressamente citados.
A luta pela manutenção de parentes em cargos comissionados, em vários tribunais no país, é deprimente e tão mesquinha que obrigou a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) propor, no Supremo Tribunal Federal, uma Ação Declaratória de Constitucionalidade em face da resolução já citada. Enfim, um momento de lucidez.
Posturas como estas, de alguns membros do Judiciário, prejudicam a todos e dão ensejo a nossa afirmação de que a apropriação do público pelo particular ainda é uma constante no espaço político brasileiro, e nas três esferas de poder. Daí porque bem indaga André Petry [03]: você confiaria num juiz que desse emprego em "seu" tribunal à mãe, à sogra, ao filho, ao primo, à tia e ao sobrinho? Você confiaria no senso de justiça desse juiz, no seu discernimento sobre ética, impessoalidade e moralidade administrativa? Você confiaria nesse juiz se, além de tudo isso, ele ainda se insurgisse raivosamente contra uma ordem de demitir toda a parentalha?
Podíamos ser poupados de tudo isto, sobretudo se o nosso Estado pugnasse pela liberdade de oportunidades, in casu, concurso público para todos estes cargos em comissão. Falta também transparência.
Já no Executivo, Elio Gaspari trouxe à tona dois casos pitorescos (em duas de nossas maiores capitais, São Paulo e Rio) de nossa imoral aplicação da lei, segundo a ótica de nossos governantes.
Segundo Gaspari [04], o prefeito de São Paulo, José Serra, resolveu medir sua pressão arterial durante uma visita ao posto de saúde de Cidade Tiradentes, localidade habitada por 150 mil cidadãos de baixa renda. Trouxeram um aparelho daqueles com bolinha de mercúrio, e na hora agá, cercado por jornalistas e fotógrafos, o aparelho pfff, trouxeram outro desta vez para ser testado pela secretária de Saúde, Maria Cristina Cury, e pfff, nada de funcionar, quando então o prefeito disse-lhe: "finge que funciona". "12 por 8" disse a secretária. Conclui Gaspari: "o prefeito e a doutora estavam num posto de saúde destinado a atender famílias de trabalhadores, dois aparelhos de medir pressão não funcionaram e em vez de o céu desabar, privilegiou-se uma sessão de fotografias, simulando-se um tudo-bem. Não ocorreu ao prefeito dizer que só sairia dali quando alguém conseguisse trazer um medidor de pressão capaz de medir pressão. (os aparelhos não funcionavam porque eram novos e continuavam lacrados. Continuavam lacrados porque não eram coisa do mundo da saúde pública de Cidade Tiradentes.)
Veja, leitor, que a lei para os donos do poder é um mero instrumento legitimador do mando, quem governa mente. Diz que o que "não funciona" funciona, e assim passa a ser, ainda que de forma virtual. Não há igualdade entre governantes e governados, não há sequer verdade no discurso democrático, será democrático este falso discurso?
O outro exemplo citado por Elio Gaspari vem do Rio de Janeiro. O secretário municipal de Saúde, Ronaldo Cezar Coelho, acompanhava o ministro Saraiva Felipe numa visita ao Hospital Souza Aguiar, o maior pronto-socorro da cidade. Tudo uma maravilha. O ministro esteve num bonito e agradável auditório, refrigerado no padrão dos 20 graus. Caro leitor, foi tudo forjado. Diz Gaspari: "Tudo mentira. O ar dos doutores era falso, soprado por dez máquinas alugadas por quatro horas. Dezenas de metros adiante, na sala de espera do setor de emergência, a refrigeração deficiente levava algumas pessoas a refrescarem-se com panos úmidos".
Veja, leitor, que o secretário justificou a decisão de alugar o tal aparelho de ar condicionado. "Não faz sentido receber o ministro da Saúde aqui e não ter ar condicionado. (...) Isso é implicância de quinta categoria e não tem nada a ver com saúde. É uma bobagem. (...) Não sei quanto custou e não vou discutir o preço de aluguel de ar-condicionado".
Podíamos concluir com as nossas palavras, mas, como acrescentar algo a esta maravilhosa conclusão do próprio Gaspari? Leia: "Se o secretário achava que não fazia sentido receber o ministro sem ar refrigerado, deveria recebê-lo em casa ou no seu gabinete. O que não faz sentido é associar a temperatura de um prédio à presença de maganos. (idéia: ministros e secretários com aparelhos portáteis, como os dos astronautas). A cobrança não deriva de implicância nem de bobagem. Deriva da falsificação deliberada da realidade. A resposta de Ronaldo Cezar Coelho reflete a arrogância do andar de cima, onde as pessoas habituam-se a achar que existe um Brasil onde não faz calor. Se faz, como fazia no emergência do Souza Aguiar, o problema é do brasileiro, que sempre vai para o país errado."
Servidor público que falseia a realidade fere de morte dentre outros preceitos jurídicos, os do art. 1º, inciso III, dignidade da pessoa humana e 37, cabeça, moralidade e eficiência administrativa, ambos do Texto Constitucional.
O futuro de nossa democracia está condicionado a superação destas arraigadas contradições, de um lado um Estado apropriado por privilegiados particulares que se intitulam "agentes públicos", e de outro; a esmagadora maioria para os quais o Estado ainda é "o mais frios dos monstros", Nietzche. Para os primeiros, as leis dependem de suas interpretações: "cada cabeça uma sentença", para os segundos, "a lei é dura mas é lei".
Notas
01 Os donos do Poder. A Formação do patronato político brasileiro. 3º ed. Rio de Janeiro: Globo. 2001.
02 A Natureza do Processo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. p. 145-146.
03 Tudo pela parentalha. Veja 1.942, ano 39, nº 5. 8/02/2006, p. 81
04 O mundo encantado da enganação tucana. Rio de Janeiro. O GLOBO. 22/01/2006, p. 12.
NOGUEIRA, Roberto Wagner Lima. O que é a lei para os donos do poder no Brasil? . Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 964, 22 fev. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8012. Acesso em: 22 de fev. 2006