sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Essa é digna de nota: O RG DE DEUS


O RG de Deus

Celio Levyman

Existe uma categoria de pessoas, os trekkies, fanáticos pela série televisiva “Star Trek” ou, como conhecida por aqui, “Jornada nas Estrelas”. A série teve várias continuações no vídeo, mas filmes de longa-metragem também.Um deles, a “Última Fronteira”, dirigido pelo próprio William Shattner, não é o melhor da série, mas contém algumas coisas interessantes.
Por motivos que não vem ao caso, a nave Enterprise vai procurar um planeta no centro da Galáxia, onde todas as civilizações conhecidas acreditavam ser o Éden, a morada de Deus. Em determinada cena, após um diálogo com o “Deus”, o famoso Capitão James T. Kirk questiona sua autoridade. O seu sempre companheiro, médico Dr. Mc Coy, intervém preocupadíssimo e pergunta a ele: ”Mas Jim, você vai pedir a identidade de Deus?”. Aos fãs da série ou que não viram o episódio no cinema, ele está à disposição nas lojas em DVD, em promoção...
Mas eis que a realidade superou a ficção: nesta semana, o portal da Internet BBC Brasil publicou uma matéria de sua correspondente em Roma intitulada “Italiano processa padre para que prove existência de Jesus”. Não, não é piada, nem está na seção de humor.
Resumidamente, um ex-agrônomo aposentado chamado Luigi Cascioli, que se autodefine como “ateu militante”, desafiou o pároco da cidadezinha italiana de Bagnorregio, perto de Roma, a provar na Justiça que Cristo existiu de verdade. A primeira audiência já ocorreu em 4 de Janeiro passado, com base em “abuso da credulidade popular” e “substituição de pessoa”.
O pároco da pequena cidade foi escolhido pelo litigante, após cinqüenta anos de sacerdócio, devido a suas pregações na Igreja local e pela legislação italiana, como representante do Vaticano e mesmo do papa, pois não se pode processar um chefe de estado estrangeiro. Dessa maneira, esse padre vai responder por todo o Vaticano a essa acusação. A propósito, a própria Santa Sé não se manifestou a respeito, até o momento.
Cascioli acusa o pároco e através dele toda a Igreja Católica de não ter provas sobre a existência de Cristo e de fazer com que as pessoas acreditem em algo que não existe.
Mais estupendo ainda é o fato do acusador acusar a Igreja de ter usado outra pessoa, que existiu de verdade, para construir a identidade de Jesus. Seria Giovanni de Gamala, filho de Judas, o Galileu, da casta dos asmoneus, descendente da estirpe de Davi.
Segundo o pároco acusado, Giovanni de Gamala é um desconhecido, e em troca relatou dados históricos que provariam a existência de Jesus, tais como os relatos de Adriano, Marco Aurélio e Tácito. Também coloca em dúvida a autoridade científica de seu acusador, que, segundo ele, não tem formação científica e nem conhece línguas antigas.
Luigi Cascioli alega que seu objetivo é “mostrar a verdade e destruir o cristianismo”, acreditando ganhar a causa, ao contrário do advogado do pároco, também entrevistado.
Em mais um dado curioso, para provar que Jesus não existiu, Luigi escreveu um livro, chamado “A Fábula de Cristo”. Nesse livro, segundo a BBC (não encontrei nem na Amazon.com ou em livrarias italianas on-line), ele se basearia na análise de textos antigos e da Bíblia, afirmando que possui provas de que a existência de Cristo provém de falsificação de documentos, que na realidade se referem a Giovanni di Gamala. A repercussão do caso pode ajudar a divulgar seu livro, admite, mas garante que esse não é seu objetivo: “... não posso deixar de vender meus livros só para que não digam que quero vendê-lo, defendeu-se”.
O autor da ação declara ainda que, caso a sentença não lhe seja satisfatória, irá recorrer e, caso também não dê certo, irá até o Tribunal Internacional de Haia.Curiosamente, até o momento não se observaram ligações entre esse livro e os sucessos de Dan Brown, como o “Código da Vinci” e “Anjos e Demônios”.
Esse caso especial merece algumas considerações. Em primeiro lugar, ninguém sabe onde estão os restos mortais de todos os citados no Velho Testamento, e das religiões monoteístas, sabidamente Maomé foi personagem histórico e possui seu túmulo, objeto de peregrinações dos muçulmanos.
Outra coisa a destacar é que o autor quer destruir o cristianismo, como diz, desmistificando a figura de Jesus, já que também seus restos mortais não existem, pois teria ressuscitado. Poderia alegar algo como “propaganda enganosa”, mas resolveu personificar em alguém supostamente real o papel de Cristo, o citado Giovanni di Gamela. Não consegui entender direito a lógica disso.
Outro ponto é que religiões são basicamente espirituais, e querer discuti-las na base da realidade factual, em tribunais ou fora dos mesmos, como em congressos científicos, é sair da metafísica para a arqueologia, sem escalas.
Sou judeu, mas considero-me um cético profissional. Mesmo assim, resolvi encarar esse caso como de particular curiosidade. Vejamos no Brasil algumas coisas.
Alguém sabe onde está o Bispo Sardinha? Foi mesmo devorado? Existiu? Não terá sido também um complô da Igreja, e nesse caso os padres Manoel da Nóbrega, Frei Caneca e tantos outros poderiam também entrar na categoria de “fake”. E se o Bispo Sardinha, voltando a ele, na verdade tivesse sido um espanhol perdido?
Alguns documentos encontrados, sei lá, na Chapada Diamantina, poderiam ser usados para provar esse tipo de coisa.
Na política, então, quem nos garante que existiu mesmo um poderoso General Golbery do Couto e Silva? Ou se Adhemar de Barros na verdade não seria João Pessoa, tido como morto, disfarçado?
Da mesma maneira, tal é a diferença, que o atual presidente Lula pode muito bem ser um Severino da Silva submetido a várias cirurgias plásticas, e o Luis Inácio original nunca ter existido, ou sumido quando preso no DOPS, já que sempre elogiou o tratamento dado a ele pelo ora Senador Romeu Tuma, então diretor do órgão.
E se aparecesse um Luigi Cascioli por aqui, e levasse, digamos, o Padre Julio Lancelotti, o Frei Betto e Dom Bertrand de Orleans e Bragança para as barras da Justiça? Essa admitiria o processo? Provavelmente não, pois apesar de constitucionalmente sermos um Estado laico, sem religião oficial e com separação Estado-Igreja, legado da Revolução Francesa, os tribunais exibem uma cruz, motivo de recente controvérsia.
Também penso em Israel, em algum radical judeu levando às cortes de lá algo semelhante, propondo a prova da existência de Moisés e das tábuas da lei, de Noé e da arca ou mesmo quem foi realmente a mulher de Adão, Eva ou Lilith!
Caso as baterias fossem apontadas para os neopentecostais, as coisas provavelmente se tornariam ainda mais interessantes, pois possuem todo o poder do uso da televisão e outros meios de comunicação de massa mais consistentes que a Igreja Católica. Na Rússia, algum comunista da velha guarda poderia processar o patriarca com os mesmos argumentos.
Talvez apenas no Islã esse problema não exista: embora eles sejam por definição submissos a Alá, sem livre arbítrio segundo o Alcorão, de Maomé até os sultões, todos sabem onde eles estão – a exceção está em quem quer ser o novo Califa, como Bin Laden, que ninguém acha, nem com a tecnologia da CIA e o conhecimento da fronteira Afeganistão-Paquistão que os soldados desse último país detém.
Êta mundinho complicado! Não queria estar na pele do coitado do pároco, que já deve estar entrado em anos, muito menos dos juízes italianos, pois o tal do Cascioli parece um fundamentalista dos mais ferrenhos.
Só falta aparecer Deus em pessoa e dizer para o primeiro PM que Lhe pedir a identidade: ”Sabe com Quem estás falando?”, com aquela voz modulada de cinema. Aí sim teríamos ao menos a prova de que Deus é brasileiro.
Quarta-feira, 8 de fevereiro de 2006
Celio Levyman, 47 anos, é formado em medicina pela Faculdade de Ciências Médicas de Santos. É mestre em Neurologia pela Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo. Foi conselheiro e diretor do Departamento Jurídico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
LEVYMAN, Celio. O RG de Deus. Última Instância. 8 de fevereiro de 2006. Disponível em: http://ultimainstancia.uol.com.br/artigos/ler_noticia.php?idNoticia=24853. Acesso em: 24 de fevereiro de 2006.

Um comentário:

Anônimo disse...

Aprendi muito